quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Magnum Opus

Amanda estava ficando cada vez mais doente. Ninguém sabia dizer o que tinha, mas meu amor estava morrendo. Ela sempre me apoiou e passamos até fome juntos, mas sempre ficamos um ao lado do outro. Agora tenho um violão e meus braços, e seu cadáver em minha frente.
            Conheci-a enquanto tocava em um bar, durante os meus vinte e poucos anos. Eu tinha uma banda na época, e ela se interessou por mim e eu por ela. Lembro-me até mesmo de que quando notei sua presença do palco me desconcentrei a ponto de quase arruinar a música. Foi uma situação um tanto engraçada e embaraçosa.
            Começamos a sair e a namorar pouco tempo depois de que ela veio falar comigo após a apresentação. Amanda era uma mulher muito bonita, de cabelos louros e olhos azuis. Gostava de música popular, e principalmente, das minhas. Eu não gostava nem tinha muita facilidade para cantar, mas tocava violão e guitarra muito bem. Era o que eu mais adorava fazer, e tirava meu sustento disso.
            E Amanda me apoiava sempre para eu seguir em frente com a minha música, mesmo depois que fomos morar juntos e tivemos muitas dificuldades com dinheiro. Sua família a condenava por ter escolhido viver comigo e me odiavam muito. Seu pai muitas vezes lhe chamara de vagabunda e de inconseqüente, por colocar sua vida no lixo para viver com um fracassado, que nunca poderia dar uma boa vida.
            Por conta disso, era só eu e minha esposa. Nós contra o mundo, e o mundo contra nós. Mas mais forte que tudo isso era o nosso amor. Quando sempre parecia que não havia mais esperança para nada, encontrávamos forças um no outro.
            Até aquela manhã.
Certo dia me veio a idéia de uma composição. Não de maneira completa, mas fragmentada. Estranhei essa invasão minha mente. Era boa, mas um tanto peculiar. Tomei meu violão e comecei a tentar formar a música. Ela era mais difícil do que eu imaginava de por na prática, e até mesmo pensei em desistir quando não conseguia ajustar os acordes e não definia o tom certo. Mas ela me viu compondo aquilo e ficou boquiaberta. Segundo Amanda, minhas composições todas eram maravilhosas, mas essa em especial, tinha potencial para ser a melhor de todas. Depois de dizer tudo isso, sorriu.
Aquele sorriso delicioso me deu um novo vigor e eu me determinei a terminá-la.
            Era difícil, mas eu não conseguia parar de tentar. E quando ela demonstrou sinais de que estava ganhando vida, Deus me perdoe por não ter percebido, Amanda começou a demonstrar sinais de que estava ficando doente. Começou com coisas simples, como um resfriado, e aos poucos essa coisa estava evoluindo para alguma coisa maior. Os médicos não sabiam dizer o que estava acontecendo com ela, mas estava ficando cada vez mais fraca, e sua voz cada vez mais baixa. Seu cabelo e olhos foram perdendo o brilho e sua pele ficando cada vez mais pálida.
            Eu estava desesperado. Pensei em avisar a família dela, no entanto ela recusou. Parecia ter aceitado tudo aquilo. Os médicos me disseram que Amanda não iria sobreviver muito tempo, e que eles fizeram tudo que podiam. E parece que ela sabia disso.
            Em sua fragilidade, apertou minha mão na cama do hospital e pediu com sua voz fraca e rouca, quase como um sussurro, que eu tocasse para ela aquela música. Queria ouvir minha maior obra prima antes de partir. Um nó se formou em minha garganta com aquele pedido. Eu havia trazido meu violão para o hospital, pois achava que ela iria querer algo do tipo, mas não pensei que ela fosse querer ouvir aquela composição.
            Busquei o instrumento e pedi para ficar sozinho com Amanda. Sentei-me em uma poltrona ao lado de seu leito e comecei a tocar. O tempo inteiro, eu estava me esforçando para não chorar na frente de minha esposa, mas eu não conseguia. A medida que a música fluía de meus dedos, as lágrimas escorriam de meu rosto.
            Quando toquei o acorde final, me atrevi a olhar para o rosto de Amanda. Seus olhos estavam parados e um sorriso estampado em seus lábios. Eu nem mesmo lembro-me do que aconteceu depois, mas fiquei chorando com meu violão no colo.
            Os dias seguintes se passaram sem muita pressa, mas rápidos como um trovão. Não tinha mais nenhuma família. Não sentia o gosto das minhas refeições, não achava graça em nada, nem mesmo tocar me dava prazer. Eu não sabia que idéias tentar, nem tinha vontade de pensar nisso.
            Mas daí então, em uma das minhas caminhadas sem muito interesse, eu passei na frente do bar onde a conheci. Minha alma se encheu de nostalgia e dor. O lugar estava um pouco mais bonito, mas ainda parecia ser o mesmo. O dono estava do lado de fora e me reconheceu. Conversamos por alguns minutos, e o mesmo me convidou parar tocar no bar. Eu estava sem trabalho naquele momento, e pensei que talvez algo para me ocupar me fizesse tentar esquecer por algum tempo. 
            Aceitei e comecei a treinar algumas canções que ele pedira. De certa forma, aos poucos eu via na música algo que eu talvez pudesse ir em frente. Cada acorde tocado me lembrava Amanda e toda a força que ela me deu durante esses anos todos. Um sorriso se estampou em meu rosto. Decidi que não iria deixar que toda a força que ela me deu fosse em vão. Iria continuar, pela sua memória.
            Chegou à noite e eu estava no camarim do bar. Havia um número considerável de pessoas. Não estava nervoso, pois já havia tocado várias vezes e eu gostava muito daquilo. As pessoas estavam gostando muito de meu desempenho e isso me deixava mais animado. Talvez fosse o mais perto de felicidade que eu havia obtido nesses últimos tempos.
            Mas daí me surgiu a idéia de tocar uma música minha. Eu tinha várias composições, e fiquei um pouco indeciso no que tocar. Então me lembrei da que Amanda havia pedido para eu tocar em seu leito de morte. Eu estava com receio de tocá-la, mas decidi homenagear minha finada esposa com essa canção. Anunciei no microfone que tocaria uma música própria e todos voltaram a atenção para mim. Fiquei um pouco nervoso, admito, ainda mais quando todos ficaram um pouco quietos.
Então comecei a tocar. Batizei-a de “Amanda”.
            O som fluiu como uma brisa de verão, tão natural quanto o canto dos pássaros. Fechei meus olhos e continuei tocando por vários minutos. Comecei a perceber que a música era, definitivamente, a minha melhor. Magnum Opus. É, essa era minha Magnum Opus. Eu pensei em Amanda o tempo todo em que toquei, e o público estava quieto, mas eu não percebi isso.
            Foi então quando toquei o acorde final, enquanto abria meus olhos. Não entendi nada do que havia acontecido ali, mas um frio subiu minha espinha.

            Todos estavam caídos no chão com um sorriso no rosto.

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