terça-feira, 5 de maio de 2015

A Outra Linha

Deus do céu, quem diria que tudo isso começou com uma simples brincadeira entre amigos? Tudo ia tão bem à minha vida, e me revolta o fato de nada disso ter lógica. Uma brincadeira estúpida de um monte de barbados bêbados, e não tinha nada de perigoso. Era só um telefonema para o próprio numero, e nada mais do que isso.
            Eu tinha vinte e três anos quando sai da casa dos meus pais. Eu trabalhava desde o final do colégio, tinha já um curso técnico e estava estável em minha vida. Mas deixe-lhes dizer, enquanto me há um pingo de sanidade mental, que desde os meus doze anos de idade eu venho mudando minha personalidade. Antes, eu era uma criança alegre, obediente, dita inteligente e que vários adultos da época gostavam de mim, mas isso começou a mudar.
            Eu passei a ser um pouco mais recluso, muitas vezes cancelando muitos compromissos com meus amigos para ficar em casa jogando vídeo-game ou lendo. Nunca gostei de estudar, mas nas matérias que eu tinha interesse, ninguém era melhor do que eu. Eu tinha poucos amigos, mas quase todos eles eu guardei até pouco tempo atrás, e parte de mim morria de vergonha e inveja que quando aos quatorze anos, vários deles diziam sobre seus casos com meninas, e quando era indagado sobre isso, muitas vezes ou ficava quieto ou mentia. A mentira sempre foi uma grande aliada minha contra isso, mas nunca inventava grandes historias para não levantar suspeitas, apenas o suficiente para ter minha própria consciência tranqüila.    
            Mas nunca se consegue mentir e enrolar os pais por muito tempo, e isso só se aprende quanto mais você acha que está indo bem. Eu dizia que estava estudando e indo bem na escola, e quando vinha o final do ano, eu estava quase reprovado. Mentiras que todo adolescente faz para proteger suas altas quantidades de horas diretas na frente do computador ou do vídeo-game, e depois de certa maturidade mental, você percebe o quanto foi burro e ridículo. A base dessas mentiras, eu consegui ficar com uma garota pela primeira vez aos meus dezesseis anos de idade, e ao contrario do que eu imaginei, não foram as mil maravilhas do que todos os meus amigos disseram. Não tinha duvidas quanto a minha sexualidade, mas não era algo de tão estonteante e vigorante quanto eu imaginei que fosse, era apenas você trocando babinha com uma pessoa do sexo oposto para se sentir membro do seu grupo social e ter um pouco de falsa autoconfiança.
            Pelo fato de eu ser recluso e preguiçoso, os meus pais haviam adotado um bordão que era citado aos berros: “Você nunca faz nada”, “Está sempre dentro desse quarto”, “Só eu que trabalho nessa casa”, e outro monte de lixo verbal que se escapa da boca dos pais quando os filhos ainda são jovens e querem se descobrir. Até entendo que naquela época eles estavam corretos quanto as minhas atitudes, mas logo após a escola isso mudou.
            Quando você recebe o seu diploma no final do ensino médio, você acha que tudo será as mil maravilhas, pois finalmente acabou a escola, mas a realidade é que você se sente pesado. Você de certa forma não consegue digerir a idéia que a sua moleza acabou e que vai finalmente começar a ter inúmeras responsabilidades. Com isso, as pessoas podem adotar duas posturas, ou enrolam os pais por mais um tempo até conseguirem entender isso, ou entram em desespero e começam a querer se “estabilizar” o mais depressa possível. Eu fui o segundo, e nessa época que você começa a fazer um milhão de planos e em certo ponto todos eles parecem ser inviáveis.
            No final das contas, o que eu fiz foi começar um curso técnico e trabalhar como aprendiz em uma loja. Durante esse período, eu jogava e ficava no computador só quando podia, que eram raras ocasiões, e meus pais me pegavam justamente quando eu “podia” ter algum lazer com aqueles mesmos bordões de antes. E isso irrita qualquer pessoa que já tem várias coisas na cabeça, pois por mais que você comece a ajudar nas contas de casa e esteja começando a construir a sua vida, você ainda é tarjado como alguém que é um vagabundo? Isso foi começando a me irritar, e cada vez mais eu ia me estressando com eles, a ponto de que eu me obrigava a ficar fora de casa nas minhas horas livres para não precisar ver o rosto deles, mesmo que eu odiasse sair para fazer coisas de “jovens comuns”, como beber e ir para balada.
            Quando me formei em meu curso, compareceram meus poucos amigos e meus pais. O sorriso falso no rosto deles me enojava, mas como um bom mentiroso que era, também sorri. Naquele momento, o que eu mais queria era procurar um emprego na área onde eu tinha cursado e um apartamento para sair da casa dos meus pais. Quando consegui esses meus dois objetivos, eles pareciam surpresos ou até mesmo chocados ao saberem que eu estava partindo. Eu senti muita vontade de vomitar em cima deles tudo o que estava embrulhando o meu estomago por todos esses anos, mas apenas disse “tchau” e fui embora.
            O fato também é que a vida é muito estranha quando se sai de casa em um momento de raiva, pois muitas vezes você se pergunta se o que fez foi o certo, será que você não fazia nada mesmo, dentre várias outras coisas. Mas como tudo, você acaba se acostumando e é pouco estranha essa sua liberdade que você conquista. Por mais que você ache que planejou tudo, que tem seu dinheiro contado, sempre lhe vem alguma surpresa, e você ai começa a sentir o peso da vida adulta nas costas. Como disse antes, você se acostuma, mas essa liberdade é tão “grande” que nem sempre se sabe o que faz. Uma analogia que fiz comigo mesmo foi que eu era como um cachorro correndo atrás de um carro, eu não saberia o que faria se pegasse um. Eu havia pegado um carro, e não sabia se mijava nas rodas, ou roia o estofado, se me abrigava da chuva nele, eu não sabia de nada, era só eu sozinho em um apartamento com um emprego, que por mais que eu gostasse, sabia que não conseguiria agüentar por muito tempo. Para ser honesto, eu odiava meu emprego. Eu só ficava nele porque o salário era bom para se viver sozinho e eu queria sair da casa de meus pais. Muitas vezes eu fiquei me perguntando sobre o que eu havia feito, e se foi certo, mas acima de tudo, eu me perguntava o porque eu estava nesse mundo, se eu tinha um emprego que odiava, estava sozinho e sempre que eu encontrava meus amigos toda novidade que eu tinha para contar era as novas mentiras e ilusões que eu havia criado nas noites que eu não conseguia dormir.
            Certa noite eu os convidei para vir a minha casa. Comprei alguns petiscos e eles trouxeram bastante cerveja e vodca. Acho que a única coisa de “um jovem normal” que eu faço é beber. Não me agradava o gosto amargo, ou cítrico ou até mesmo forte da vodca, a não ser se misturado com varias outras coisas doces, como refrigerantes e energéticos. O que mais me agradava era o efeito. Aquela tontura e aquela sensação de não precisar esconder nada de ninguém, de poder contar a mentira que fosse, a verdade que fosse, ninguém se importava. Todos estariam bêbados, e mesmo que não estivessem, não relevariam os assuntos de um rapaz alcoolizado.
            Mas eu não tinha nem sequer começado a me intoxicar, devido a minha constituição razoavelmente alta, quando um amigo meu teve a ridícula idéia de ligar para o próprio numero. Todos seguiram a mesma linha de raciocínio que a minha, que era completamente ridículo aquela coisa de ligar para si mesmo, pois o máximo que aconteceria era cair na caixa postal. Outro amigo acabou cedendo e sacou o celular. Discou o próprio numero e ficou quase um minuto com ele no ouvido para somente dar de ombros e rir da própria estupidez. Assim acabou que todos o fizeram, exceto eu. Era algo tão ridículo que nem mesmo iria discutir, apenas não iria fazer e pronto.
            Naquela noite, eu estava razoavelmente sóbrio quando todos foram embora. Limpei a sujeira que havia sobrado, coloquei tudo no seu devido lugar, esvaziei na pia o resto de vodca que havia sobrado e avistei meu celular. Tomei ele nas mãos e mandei uma mensagem para saber se eles estavam bem, mas não me lembro se obtive alguma resposta, apenas sei o que aconteceu em seguida.
            Rindo sozinho em meu apartamento, eu comecei a discar o meu próprio numero. Eu tentei me lembrar o porque eles queriam fazer isso, e em uma memória estranhamente embaçada, o que eu me recordava era que segundo o meu amigo, que havia sugerido isso e estava cursando rede de computadores, havia uma pequena probabilidade de que nós pudéssemos ouvir o que dissemos naquele momento vindo pelo próprio celular. Era uma coisa ridícula, por mais que ele desse razões técnicas para isso, mas eu fiz. Seria engraçado ouvir minha voz duplicada pelo celular.
            Mas logo depois do terceiro toque, o que aconteceu até agora eu não sei dizer o que foi.
            “O que foi?! Não vê que estou morto?!” disse uma voz que eu odiei ouvir. Aquela mesma sensação que todo mundo tem quando ouve a própria voz gravada, porque era a minha voz. Mas ela não estava gravada, e sim falando comigo. Desliguei a chamada em um reflexo rápido e meu coração começou a palpitar. Certamente, eu havia discado o numero errado e algum maluco atendeu, que tinha voz extremamente parecida com a minha. Minhas mãos tremiam enquanto eu ousava checar o numero que eu havia discado, e quase deixei o celular cair no chão quando, depois de conferir mais de quinze vezes, era o meu próprio numero que havia ali.
            Soltei um grito de pânico quando meu celular tocou logo em seguida e o mesmo caiu de minha mão tremula. O apanhei com um nó na garganta e cai sentado no sofá, com as pernas bambas, quando conferi o numero que me ligava. O meu. O meu próprio numero estava me ligando e eu não sabia o que diabos estava acontecendo.
            Atendi e o levei levemente a meu ouvido, tremendo e ofegante. “Porque você me ligou?! Você ainda se importa?! Eu estou morto, sua cria de vermes!” Minha voz do outro lado da linha rosnava. Ela era insana, mas não havia nenhuma duvida que era minha.
            Desliguei meu celular com rapidez. Caminhei apressadamente, olhando para os lados, para meu quarto. Fechei a porta rapidamente com um frio me subindo a espinha. Aquele ofego não me abandonava, e eu não parava de suar, mesmo fazendo frio. Demorei demasiadamente para pegar no sono, e quando o mesmo chegou, ele me trouxe aquela voz que era minha, mas de alguma forma era um rosnado enlouquecido. Deus do céu, o que diabos era aquilo?
            Acordei cansado, bastante irritado e com um pouco de dor de cabeça. Quando a razão voltou para mim, percebi que talvez eu tivesse bebido mais do que havia imaginado na noite anterior, e aquilo tudo foi fruto da intoxicação. Dei graças a Deus por ser domingo, pois achava que era segunda. Caminhei até a sala e meu telefone estava em cima do sofá. Não quis olhar para ele, e fui até o banheiro tomar banho. Uma vez meu padrinho havia me dito que não tinha nada melhor para curar a ressaca do que um bom banho gelado, e de fato ele tinha razão, porque eu odiava banho gelado. Fiquei dois minutos com a água fria caindo em meu corpo, então troquei para quente.
            Tive a leve impressão de ter dormido no banho, me deixando respirar o vapor quente da água. Senti como se a gravidade da Terra estivesse comprimindo meu corpo, que tudo ao meu redor era gigante e eu era apenas uma formiga. Por um momento eu esqueci de mim mesmo, até que eu senti aquele grasnado em meu ouvido. “EU ESTOU MORTO, SUA CRIA DE VERMES!” Isso me fez voltar à realidade e percebi que o chuveiro havia esquentado muito. O desliguei rapidamente e me sentei no chão. Minhas costas ardiam muito e eu não parava de ofegar. Sai do banheiro e fui até a sala. Com um pouco de hesitação, eu apanhei meu celular e o liguei. Enquanto o mesmo iniciava, eu decidir assistir um pouco de televisão. Eu só a tinha para jogar vídeo-game, mas naquele momento eu queria que tivesse algum barulho naquele apartamento.
            Meus amigos haviam chegado em segurança em casa, e eu estava navegando nas redes sociais. Às vezes uma tristeza e auto piedade me invadiam quando eu me sentia bem fazendo essas coisas. Parecia que era só isso que me dava prazer de verdade, e isso era ridículo. Coisas tão medíocres e fúteis me eram motivo de alegria. Lembrei que dia era, e percebi que provavelmente viria alguns primos meus para a casa de meus pais para comer um churrasco. Eu sentia muita falta desses momentos que eu era feliz e não sabia, e me corria de remorso para ir até lá. Acredito que eu seria bem vindo em suas mesa, mas eu tinha vergonha de aparecer até lá. Parte de mim queria que alguém se importasse comigo, que ligassem para mim e me chamassem para ir até lá.
            O telefone tocou e me escapou um grito.
            Nem mesmo vi quem me ligava, apenas o atendi. Meu sangue gelou quando aquele mesmo rosnado que (era) lembrava a minha voz ria do outro lado da linha. “Acho que nem vermes gostariam de se banquetear com a sua carne podre, seu resto de lixo.” Gritei e perguntei o que aquele imbecil queria. Outra risada seca. “Eu quero me deleitar com seu sofrimento. Não vê que estou morto?” Retruquei dizendo que se encontrasse ele, provavelmente ele estaria morto, mas recebi outra risada como resposta. “Pode apostar que fará isso, cria de vermes! Não vê que estou morto?”
            Desliguei o telefone e pus as duas mãos na testa. Eu peguei e fui até o registro de chamadas e tentei bloquear aquele numero, mas daí veio uma mensagem dizendo que eu não podia bloquear o próprio numero. Atirei o celular no sofá e me sentei logo depois.
            Naquele mesmo dia, meu celular tocara mais duas vezes, mas não ousei atender. Podia ser até mesmo o telefonema que eu sempre quis que meus pais fizessem, mas eu não tinha coragem de pegar o celular. Pude até mesmo ter tido um momento de coragem insana para confrontar aquele maluco, mas na verdade eu estava apavorado. Como que aquele infeliz havia conseguido me deixar tão perturbado assim? Não tinha certeza, mas aquela pergunta que ele sempre fazia me dava calafrios só de pensar. “Não vê que estou morto?” Era o que ele sempre dizia. O que queria dizer com isso? Deus do céu, eu estou levando a serio um maluco e conseguiu de alguma forma clonar meu telefone.
            Os dias seguintes foram bastante perturbadores. As vezes, quando eu estava no meio do trabalho com o celular na mão, navegando em alguma rede sócia ou algo assim, meu sangue gelava e engolia um grito quando o telefone tocava. E mais ainda quando eu via qual numero que era. As vezes, eu atendia e ouvia aquela mesma voz. Normalmente nós não gostamos da nossa própria voz gravada, isso é normal de qualquer pessoa, mas imagine começar a ter pânico dela? Eu descobrira isso quando resolvi aceitar um convite de sair com meus amigos e resolvemos gravar um vídeo. Não havia duvidas, aquele infeliz tinha a minha voz, e além do leve desconforto de ouvi-la na gravação, meu corpo se arrepiou todo também.
            Por conta disso, eu acabei por começar a ficar um pouco mais quieto. Normalmente eu gostava de conversar com as pessoas quando tinha a oportunidade, mas isso foi mudando. Lembro-me que uma mulher de mais ou menos a minha idade tentou puxar assunto comigo no restaurante onde almoçava. Tinha cabelos castanhos volumosos e olhos cinzentos. No começo, consegui manter um bom assunto, até mesmo esquecer que eu tinha pavor de minha própria voz, mas ai então o maldito telefone tocou. Verifiquei o numero e tudo começou a mudar. Fiquei inquieto, um pouco defensivo e até mesmo grosso com a mulher. A mulher levou na brincadeira na hora, mas nunca mais quis falar comigo.
            Mais ou menos nessa mesma época, eu comecei a me afastar dos poucos amigos que eu tinha. As vezes eu me encontrava com eles, mas sempre acabava sendo um inferno. Nunca fui um homem de discutir, mas comecei a ser. Aos poucos, fui me tornando uma pessoa bastante desagradável de se conviver e fui sendo deixado de lado durante as vezes que meus amigos saiam. Eu podia muito bem ir até lá e pedir desculpas para eles, e provavelmente eles aceitariam, mas eu sempre tive muita auto piedade. Eu queria que eles viessem até mim e perguntassem o que estava havendo, queria de certa forma ser cuidado, mas nada disso aconteceu.
            Certa noite, eu voltava para casa mais cedo. Percebi que era sexta feira e provavelmente eles estavam reunidos na casa de alguém, e isso me deu uma dor no coração. Também lembrei de meus pais, que naquele momento estariam tomando uma sopa maravilhosa feita pela minha mãe e eu poderia estar lá com eles, mas estaria em casa, comendo alguma porcaria industrializada e vivendo a vida dos outros através de uma merda de uma rede social.
            Ao chegar em casa, eu notei que as luzes da sala estavam ligadas, mas eu tinha certeza que as luzes estavam desligadas quando sai. Saquei e abri meu canivete. Adentrei o corredor a passos lentos e cautelosos, até que eu vi alguém no sofá. Eu perdi o ar quando vi aquilo, e minhas pernas ficaram bambas. Aquele homem tinha exatamente a minha altura, os mesmos cabelos castanhos volumosos, vestia-se exatamente do jeito que eu me vestia e usava os mesmos sapatos. A única diferença era que aquela figura tinha uma pele muito mais pálida que a minha e olheiras muito mais profundas. Parecia um fantasma de mim mesmo, uma visão de mim mesmo depois da morte, mas ali estava aquela coisa diante de mim.
            Ele abriu um sorriso psicótico para mim. Nunca gostei de mim sorrindo, pois eu achava minha boca feia e meus dentes um pouco tortos, mas aquela coisa não se importava. Ele sorria como um maníaco, e isso me deu o maior de todos os pânicos, pois aquele de certa forma era meu sorriso também. Indaguei quem era, e sua resposta veio acompanhada de uma risada aguda e rasgada. “As vezes é bastante difícil de saber quem nós somos. Não vê que estou morto?” Aquele cara certamente tinha a mesma voz daquela pessoa que me ligava, e certamente era a minha voz. Aquele seria um Duplo? Não, isso não existe. Aquela coisa parecia mais uma visão de mim mesmo.
            Perguntei como ele invadira meu apartamento, e ele dessa vez se deitou no sofá de tanto rir. Aquilo me deixava furioso e apavorado. “Essa é minha casa também, sua cria de vermes. Não vê que estou morto?” Indaguei um pouco gago, o que ele queria dizer com aquilo, e então sua expressão se tornou seria.
            “Isso.”
            Então percebi duas coisas que não haviam antes na minha sala. Uma delas era uma corda branca, com um nó de forca na ponta, presa e pendurada pelo ventilador de teto. Outra delas, era a pequena escada de alumínio que eu guardava na despensa. Ele subiu degrau por degrau, bem devagar e com o seu olhar serio para mim. Pensei em impedir, mas aquilo tudo parecia surreal demais para ser verdade. Laçou o pescoço no nó de forca e se deixou cair. Virei o rosto rapidamente, mas não pude deixar de ouvir o estralo de seu pescoço se quebrando. Nessa altura, eu já não sabia mais o que fazer. Meu pavor era imenso e achei até mesmo que tinha molhado as calças.
            Lentamente e com o corpo tremulo, virei o rosto para ver o cadáver pendurado na minha sala, mas a verdade é que havia e não havia um corpo ali. Fui até a minha despensa e vi que minha escadinha estava ali ainda, no mesmo lugar onde eu havia deixado. Quando retornei para a sala, o corpo desapareceu por completo. Eu não sabia mais o que estava acontecendo e decidi ir dormir, mesmo sendo demasiado cedo.
            Diferente dos últimos dias, esse meu sono fora bastante tranqüilo e eu acordei de certa forma revigorado, e não mais esgotado do que antes. Eu não sentia mais a auto piedade e tristeza de antes, parecia que tudo tinha sumido em um passe de mágica. Meu telefone não tocou pela manhã toda e eu estava com vontade de fazer as coisas. Algo dentro de mim estava diferente, eu não sabia o que era, mas tinha.
            Procurei meus amigos e pedi desculpas pelas minhas atitudes ultimamente. Como eu havia imaginado, eles aceitaram e saímos naquela mesma noite. Acredito que não fui só eu que percebera isso, mas eu não era mais a mesma pessoa. Normalmente eu era um cara bastante tímido nas baladas, tinha um pouco de receio de ir até as mulheres, mas naquela noite foi diferente. Eu estava com uma atitude que eu não estava reconhecendo e todos meus amigos ficaram surpresos da quantidade de mulheres que eu fiquei.
            No dia seguinte, liguei para meus pais. Eles me convidaram para ir até a minha antiga casa e comer um churrasco. Alguns dos meus parentes estavam lá e foi bastante divertido. Todos estavam notando minha mudança repentina.
            No dia seguinte, meu desempenho no trabalho fora muito melhor do que nos últimos dias. Eu encontrei no restaurante aquela mesma mulher de antes e comecei a conversar com ela. Por mais que eu gostasse de falar, eu tinha bastante dificuldade de conseguir manter um assunto interessante com as mulheres, mas dessa vez foi diferente. Eu não consegui contar quantas vezes consegui fazê-la rir, como eu tinha habilidade para dizer o certo na hora certa, e tudo com uma naturalidade imensa.
            De certa forma, eu estava bastante feliz com isso que estava acontecendo na minha vida, mas na semana seguinte tudo começou a ficar estranho.
            Começou quando me encontrava com meus amigos, seja na balada ou na casa de alguém. Eu comecei a exagerar bastante na bebida e eu começara a me transformar em uma pessoa, não desagradável como antes, nem extremamente agradável como eu estava, mas sim uma pessoa bastante impulsiva e que não pensava muito no que dizia. Com isso, aos poucos eles começaram a ter medo de mim, e tinham até certo receio de me terem por perto. Quando me relatavam o que eu havia dito na noite anterior, eu não conseguia achar aquilo ruim, tanto pelo fato de saber que eu estava alcoolizado, quanto pelo fato de eu gostar daquelas coisas que eu havia dito. Os relatos eram que eu argumentava que quando as pessoas iam para a balada, na verdade era tudo um grande rebanho de gado e nós, pessoa mais superiores, estávamos ali justamente para se banquetear da mais saborosa carne que o mundo podia oferecer. Outra coisa era sobre as redes sociais, pois eu dizia que todas as pessoas que expunham suas vidas na rede, como se pendurassem todos os órgãos internos em uma vitrine, na verdade estavam quase colando um aviso em suas testas para que um terrorista explodisse sua vida miserável.
            Eu não achava aquilo tudo ruim, era apenas o que eu pensava das pessoas, mas todos estavam bastante apavorados. O que lhes deixava com medo era o fato de que eu falava tudo com a maior naturalidade de todas, como se eu pensasse aquilo de verdade, e de fato pensava. Dessa vez, eles não chegaram a se afastar de mim, mas eu sentia o seu continuo desconforto quando soltava a língua, e isso me deixava muito irritado, e isso aos poucos foi se transformando em ódio.
            Eu havia dito que no começo eu havia me afastado de meus pais, mas naquele momento quem estava se afastando era eles. Eu na hora do churrasco, minha comida preferida, dizia que seres inferiores, como bois, porcos e humanos, deviam sempre virar comida para os mais superiores, como eu me considerava. Também cheguei a comentar algo de como a vida era gerada de uma forma nojenta, e era difícil de imaginar que viemos de um ato sexual. As vezes, me recusava a acreditar que para mim nascer, meu pai teve que comer minha mãe. Eu achava que pessoas superiores deviam ser geradas de outra forma, e não de uma maneira tão banal.
            Aquela moça do restaurante, como era muito educada, não me respondera com grosseria quando eu havia dito que todas aquelas pessoas ali em volta eram repulsivas, e que nós éramos gerados de uma maneira nojenta e asquerosa. A partir daquele meu relato, ela começara a me evitar mesmo quando eu tentava procurá-la, e isso me dava muito ódio. Eu odiava ser ignorado e aquela vagabunda imunda, que ia para a balada ser rebanho de consumo, estava me evitando. Isso era um absurdo, eu não podia ser ignorado. Chegou ao ponto que ela ameaçou chamar a policia e eu rira com desprezo.
            Depois disso, nem mesmo meus amigos conseguiram agüentar muito tempo meus assuntos diabólicos e repulsivos, e eu não agüentava mais suas expressões de medo que brotavam em seus rostos quando me sentava na mesa. Era algo ridículo sentir medo, e era mais ainda eles me ignorarem. Eu não seria ignorado e não sentiria medo como vermes que são!
            Em um momento de filosofia, quando estava sozinho em meu apartamento, percebi que não sentia medo de nada. Até que pensei se eu teria algum de morrer, e logo veio a resposta: “Claro que não”, respondi para mim mesmo com uma risada aguda. Mas essa semente de duvida brotava em minha mente, pois ainda não tinha certeza. Enfureci-me com minha própria duvida e decidi que iria acabar com ela. Fui até a despensa e peguei uma corda e uma escadinha de alumínio. Fiz um nó de forca e o pendurei em meu ventilador da sala, de maneira firme.
            Por um momento, me sentei no sofá e comecei a tremer. Eu ainda tinha essa duvida em minha mente, e estava apavorado de certa forma. Me estapeei varias vezes, com ódio de minha pessoa por sentir isso. Não era admissível que eu sentisse algum medo, eu não era um verme como eles.
            Nesse momento de fúria e medo, subi as escadas e lacei meu pescoço. Varias vezes pensei em descer o mais depressa possível, não querendo fazer isso, mas meu ódio era imenso. Quanto mais eu sentia medo, mais fúria crescia, e mais coragem eu criava para pular.
            Com um grito rasgado e insano, tombei da escada.
            Senti meu pescoço se quebrar e minha respiração trancar antes de minha vida se esvair do meu corpo. De fato, você sentia alguma coisa quando morria, mas não era nada que não se pudesse agüentar. Era bem rápido, como tirar sangue.
            Eu não sei como, mas depois de algum tempo eu acordei suspenso na sala. Minha visão era levemente turva, mas logo se adaptou a luminosidade. Senti ainda minha respiração trancada e o pescoço partido, mas nenhuma dor. Comecei a rir comigo mesmo, ainda suspenso, enquanto tentava descer. Me amaldiçoei por ter atado muito bem a corda no ventilador, pois precisei de vários e árduos minutos para conseguir me soltar.
            Quando cai no chão, eu ouvi um som bastante familiar. Era o som de meu celular tocando na minha estante. Tirei a corda de meu pescoço e caminhei até o aparelho, rindo baixo mas histericamente.
             “O que foi?! Não vê que estou morto?!”
            Ouvi o telefone da outra linha ser desligado rapidamente. Comecei a rir comigo mesmo enquanto procurava o numero no registro de chamadas e comecei a discá-lo novamente.