Já nem tenho memórias de
quando começou esse meu tormento, talvez porque sempre tive essa cruz em meus
ombros. Perdi as contas de quantas noites passei em claro, e esse numero
poderia se multiplicar muito mais se fosse contar as noites mal dormidas, que quando
acordo pela manhã estou mais exausto ainda. Para dizer a verdade, eu não me
lembro de nenhum dia que eu dormi com tranqüilidade, talvez nem mesmo quando
estava no ventre de minha mãe. Parece que tudo que eu faço, tudo que eu tento,
tudo que eu bebo só faz minha loucura aumentar. E quanto mais ela aumenta,
menos eu ouso olhar... A tentação é tão grande quanto o mundo, mas eu não ouso
olhar. Parece uma força da natureza, me repelindo. E por causa disso, eu não
consigo dormir.
Como eu já havia dito, eu não lembro de quando começou,
mas foi logo nos primeiros anos de minha infância. Enquanto meus pais e meus
irmãos dormiam tranquilamente à noite, eu estava tremendo debaixo das cobertas.
Um medo de algo tão ridículo quanto minha estupidez. Eu me deitava e me cobria
até a cabeça, deixando apenas uma pequena fresta para poder respirar. Eu sentia
aquilo, eu quase conseguia ouvir aquilo. Eu não sabia o que era, mas estava
debaixo da minha cama.
Varias vezes, eu chorava para minha mãe, eu pedia para
ela mandar aquela coisa embora. No começo, como uma mulher de muitas
superstições, ela rezava a cabeceira de minha cama, mas de nada adiantava, eu
continuava sabendo que tinha algo ali. Eu tentei já dormir com meus pais, mas
parecia que aquela coisa me seguira, para o meu tormento. Eu já tentei
experimentar trocar de cama com meus dois irmãos, mas essa tentativa também foi
falha.
Mamãe tentou me mostrar varias vezes, mas eu chorava e
esperneava. Eu não sei, mas aquela coisa dizia para mim que eu simplesmente não
podia olhar. Meu medo alimentou a ira e frustração de meus pais, fazendo com
que os mesmos me batessem quando eu pranteava de pavor. Meu irmão mais velho
gozava e se deleitava de minha agonia, como se fosse aqueles irmãos malvados
dos contos de fadas. Minha irmã talvez fosse à única que tivesse algo que
chegasse perto de compreensão por meu tormento, mas isso desvanecia com o
passar o tempo, ao contrario de minha paranóia.
Eu ficava horas e horas deitado, esperando o tempo passar
e sentindo. Eu sabia que tinha alguma coisa ali. Tentei muitas vezes olhar, mas
não conseguia. Minha frustração aumentava análoga ao meu medo.
Eu já estava no final de minha infância. Pelo fato de eu
não conseguir dormir direito à noite, eu era uma criança sem nenhuma energia
para brincar com os outros. Meu irmão encontrou vários outros motivos para me
dar dores de cabeça alem de meu tormento. Se quisesse me encontrar na infância,
poderia me achar facilmente em algum canto da minha casa, tentando ler algum
livro. Às vezes eu não tinha condições físicas para isso, e acabava dormindo de
cócoras por alguns minutos... Até ser acordado com um chute ou escarro de meu
irmão.
Eu cresci o odiando. Reclamei varias vezes aos meus pais,
mas não me deram nenhum ouvido, talvez pelo fato de estarem cansados de terem
um filho problemático como eu. Passei minha infância inteira na companhia da
solidão. E também da incompreensão. Diabos, porque eles não me ouviam?! Tinha
alguma coisa ali, como que ninguém conseguia ver isso? Mas o que eu estava
pensando? Nem mesmo eu conseguia ver.
Eu não me lembro de ter tido alguma festa de aniversario
em minha infância. Meus irmãos ganhavam sempre, e tinha sempre bastante
convidados, mas eu não tinha ninguém para convidar. Nossos parentes moravam
todos muito longe de nós, e mesmo que morassem perto, eu não era uma criança
muito agradável.
Eu já estava com doze anos. Minhas olheiras eram
profundas e meu olhar vazio. Minha pele era pálida, embora morasse em um local
muito quente e ensolarado. Meu irmão estava com dezesseis anos e tinha uma
namorada bonita, o que muitas vezes o fazia ter uma grande arrogância para cima
de mim. Minha irmã às vezes lembrava-se de minha existência, e outras vezes
não. Em minha introversão, eu sentia ódio de tudo. De mim mesmo, de meus pais e
de meus irmãos. Mas eu era um covarde.
As minhas noites estavam ficando piores. Quanto mais eu
queria dormir, mais eu sentia aquela coisa debaixo da minha cama. E ela estava
começando a querer falar comigo. Queria algo de mim. Queria algo que eu tinha. Mas
sua voz era um sussurro distante e incompreensível. Eu queria dormir, mas
aquilo não me deixava. Eu queria gritar, mas minha voz estava presa. Eu queria
morrer, mas eu era fraco demais para isso.
Meu desempenho na escola era péssimo. Minha visão era turva
e meus pensamentos eram em coisas tão abstratas quanto um borrão de tinta. Às
vezes, durante uma aula, uma mosca prendia muito mais minha atenção do que
aquele monte de palavras na lousa. Nem mesmo conseguia mais ler direito. Minha
mente não me deixava fazer nada.
Eu passava horas e horas assistindo televisão, mas sem
prestar atenção em nada. Eu odiava televisão, mas era a única coisa que eu
conseguia fazer. Eu não me sentia um inútil, eu era um inútil. Nem dormir eu
conseguia. Aquilo não deixava. E também vetava minha vida.
Os dias começaram se passar rapidamente, mas as noites se
tornaram mais longas ainda. Eu tinha tomado o habito de ficar até altas horas
da madrugada assistindo televisão antes de ir para a cama. E durante uma dessas
noites eu ouvi algo estranho no quarto de meu irmão. Eu não me importava com
ele, mas eu fui averiguar por qualquer motivo.
A porta do quarto estava entreaberta e a luz acesa. Eu
nunca havia visto algo assim antes. Meu irmão estava fazendo sexo com sua
namorada. Eu senti algo estranho em meu corpo quando vi aquilo. Eu não entendi
muito bem o que era, mas parecia muito com o que falavam na escola.
Menos de dez segundo depois, ambos notaram minha presença
no local. Meu irmão, em cólera, levantou da cama ainda nu e avançou em minha
direção a passos pesados. Eu fiquei sem reação quando ele direcionou um murro
em meu rosto. Ele já havia usado violência física em mim antes, mas não era
nada parecido. Ele me golpeou de novo, até que cai de bruços no chão. Dois
chutes em meus rins me fizeram engolir um grito de dor. Eu não entendia o que
eles diziam, mas eles estavam me ameaçando.
Eu fiquei atirado no corredor de minha casa enquanto
ouvia a porta do quarto se trancar. Eu não sentia vontade de me levantar.
Simplesmente fiquei ali por quase a noite inteira, chorando baixinho e sentido
dor. Eu sentia ódio. Eu estava tão cego por fúria que nem lembrei que aquele
era o meu aniversario. Eu estava completando quinze malditos anos. Quinze anos
de uma insignificante existência.
Eu estava farto de tudo isso. Levantei-me do chão com
dificuldade e cambaleei até meu quarto. Pela primeira vez, minha cama pareceu
ser confortável. E aquela coisa começou a me perturbar de novo. Mas eu estava
farto disso. Eu estava com o mesmo medo de sempre, mas eu estava também
cansado.
E pela primeira vez, eu consegui entender o que a coisa
dizia: “Olhe”. Foi o que ela disse. Ela tinha voz de homem e de mulher, e
parecia ser muitos. Engoli em seco. Um frio correu a minha espinha à medida que
eu me enrolava mais nas cobertas. A coisa queria que eu olhasse. Olhasse para
ela. Olhasse debaixo da cama.
Um nó se formou em minha garganta quando eu, aos poucos,
decidia que iria olhar. Em quinze anos de minha existência, eu nunca havia
ousado olhar debaixo da cama, e eu estava prestes a fazer isso. Minha
respiração estava pesada e rápida. Minha pulsação disparada, e o suor frio
escorria por meu pescoço.
Pus a mão direita na borda da cama e hesitei por um
momento. Era apavorante demais para alguém covarde como eu. Pus a outra mão e
agarrei a madeira com força. Lentamente apoiei meu corpo para frente, e
colocava minha cabeça embaixo da cama. Deus do céu, eu estava ficando louco.
Não conseguia me controlar. Era apavorante demais.
Então, em um movimento lento, olhei.
Minhas mãos se afrouxaram e eu senti meu coração parar
por um momento. Minha expressão se pudesse defini-la, seria de pânico. Abri a
boca, mas não conseguia respirar. Parecia que todos os músculos do meu corpo
haviam virado gelatina. Meus ouvidos pareciam que iriam explodir a qualquer
momento. Minhas orelhas estavam quentes, e minha cabeça parecia que estava
desprendida de meu corpo.
Havia
outros rostos junto, tão desfigurados quanto, mas eu estava vendo a minha
própria face, de uma forma distorcida e monocromática.
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