segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Debaixo da Cama

Já nem tenho memórias de quando começou esse meu tormento, talvez porque sempre tive essa cruz em meus ombros. Perdi as contas de quantas noites passei em claro, e esse numero poderia se multiplicar muito mais se fosse contar as noites mal dormidas, que quando acordo pela manhã estou mais exausto ainda. Para dizer a verdade, eu não me lembro de nenhum dia que eu dormi com tranqüilidade, talvez nem mesmo quando estava no ventre de minha mãe. Parece que tudo que eu faço, tudo que eu tento, tudo que eu bebo só faz minha loucura aumentar. E quanto mais ela aumenta, menos eu ouso olhar... A tentação é tão grande quanto o mundo, mas eu não ouso olhar. Parece uma força da natureza, me repelindo. E por causa disso, eu não consigo dormir.
            Como eu já havia dito, eu não lembro de quando começou, mas foi logo nos primeiros anos de minha infância. Enquanto meus pais e meus irmãos dormiam tranquilamente à noite, eu estava tremendo debaixo das cobertas. Um medo de algo tão ridículo quanto minha estupidez. Eu me deitava e me cobria até a cabeça, deixando apenas uma pequena fresta para poder respirar. Eu sentia aquilo, eu quase conseguia ouvir aquilo. Eu não sabia o que era, mas estava debaixo da minha cama.
            Varias vezes, eu chorava para minha mãe, eu pedia para ela mandar aquela coisa embora. No começo, como uma mulher de muitas superstições, ela rezava a cabeceira de minha cama, mas de nada adiantava, eu continuava sabendo que tinha algo ali. Eu tentei já dormir com meus pais, mas parecia que aquela coisa me seguira, para o meu tormento. Eu já tentei experimentar trocar de cama com meus dois irmãos, mas essa tentativa também foi falha.
            Mamãe tentou me mostrar varias vezes, mas eu chorava e esperneava. Eu não sei, mas aquela coisa dizia para mim que eu simplesmente não podia olhar. Meu medo alimentou a ira e frustração de meus pais, fazendo com que os mesmos me batessem quando eu pranteava de pavor. Meu irmão mais velho gozava e se deleitava de minha agonia, como se fosse aqueles irmãos malvados dos contos de fadas. Minha irmã talvez fosse à única que tivesse algo que chegasse perto de compreensão por meu tormento, mas isso desvanecia com o passar o tempo, ao contrario de minha paranóia.
            Eu ficava horas e horas deitado, esperando o tempo passar e sentindo. Eu sabia que tinha alguma coisa ali. Tentei muitas vezes olhar, mas não conseguia. Minha frustração aumentava análoga ao meu medo.
            Eu já estava no final de minha infância. Pelo fato de eu não conseguir dormir direito à noite, eu era uma criança sem nenhuma energia para brincar com os outros. Meu irmão encontrou vários outros motivos para me dar dores de cabeça alem de meu tormento. Se quisesse me encontrar na infância, poderia me achar facilmente em algum canto da minha casa, tentando ler algum livro. Às vezes eu não tinha condições físicas para isso, e acabava dormindo de cócoras por alguns minutos... Até ser acordado com um chute ou escarro de meu irmão.
            Eu cresci o odiando. Reclamei varias vezes aos meus pais, mas não me deram nenhum ouvido, talvez pelo fato de estarem cansados de terem um filho problemático como eu. Passei minha infância inteira na companhia da solidão. E também da incompreensão. Diabos, porque eles não me ouviam?! Tinha alguma coisa ali, como que ninguém conseguia ver isso? Mas o que eu estava pensando? Nem mesmo eu conseguia ver.
            Eu não me lembro de ter tido alguma festa de aniversario em minha infância. Meus irmãos ganhavam sempre, e tinha sempre bastante convidados, mas eu não tinha ninguém para convidar. Nossos parentes moravam todos muito longe de nós, e mesmo que morassem perto, eu não era uma criança muito agradável.
            Eu já estava com doze anos. Minhas olheiras eram profundas e meu olhar vazio. Minha pele era pálida, embora morasse em um local muito quente e ensolarado. Meu irmão estava com dezesseis anos e tinha uma namorada bonita, o que muitas vezes o fazia ter uma grande arrogância para cima de mim. Minha irmã às vezes lembrava-se de minha existência, e outras vezes não. Em minha introversão, eu sentia ódio de tudo. De mim mesmo, de meus pais e de meus irmãos. Mas eu era um covarde.
            As minhas noites estavam ficando piores. Quanto mais eu queria dormir, mais eu sentia aquela coisa debaixo da minha cama. E ela estava começando a querer falar comigo. Queria algo de mim. Queria algo que eu tinha. Mas sua voz era um sussurro distante e incompreensível. Eu queria dormir, mas aquilo não me deixava. Eu queria gritar, mas minha voz estava presa. Eu queria morrer, mas eu era fraco demais para isso.
            Meu desempenho na escola era péssimo. Minha visão era turva e meus pensamentos eram em coisas tão abstratas quanto um borrão de tinta. Às vezes, durante uma aula, uma mosca prendia muito mais minha atenção do que aquele monte de palavras na lousa. Nem mesmo conseguia mais ler direito. Minha mente não me deixava fazer nada.
            Eu passava horas e horas assistindo televisão, mas sem prestar atenção em nada. Eu odiava televisão, mas era a única coisa que eu conseguia fazer. Eu não me sentia um inútil, eu era um inútil. Nem dormir eu conseguia. Aquilo não deixava. E também vetava minha vida.
            Os dias começaram se passar rapidamente, mas as noites se tornaram mais longas ainda. Eu tinha tomado o habito de ficar até altas horas da madrugada assistindo televisão antes de ir para a cama. E durante uma dessas noites eu ouvi algo estranho no quarto de meu irmão. Eu não me importava com ele, mas eu fui averiguar por qualquer motivo.
            A porta do quarto estava entreaberta e a luz acesa. Eu nunca havia visto algo assim antes. Meu irmão estava fazendo sexo com sua namorada. Eu senti algo estranho em meu corpo quando vi aquilo. Eu não entendi muito bem o que era, mas parecia muito com o que falavam na escola.
            Menos de dez segundo depois, ambos notaram minha presença no local. Meu irmão, em cólera, levantou da cama ainda nu e avançou em minha direção a passos pesados. Eu fiquei sem reação quando ele direcionou um murro em meu rosto. Ele já havia usado violência física em mim antes, mas não era nada parecido. Ele me golpeou de novo, até que cai de bruços no chão. Dois chutes em meus rins me fizeram engolir um grito de dor. Eu não entendia o que eles diziam, mas eles estavam me ameaçando.
            Eu fiquei atirado no corredor de minha casa enquanto ouvia a porta do quarto se trancar. Eu não sentia vontade de me levantar. Simplesmente fiquei ali por quase a noite inteira, chorando baixinho e sentido dor. Eu sentia ódio. Eu estava tão cego por fúria que nem lembrei que aquele era o meu aniversario. Eu estava completando quinze malditos anos. Quinze anos de uma insignificante existência.
            Eu estava farto de tudo isso. Levantei-me do chão com dificuldade e cambaleei até meu quarto. Pela primeira vez, minha cama pareceu ser confortável. E aquela coisa começou a me perturbar de novo. Mas eu estava farto disso. Eu estava com o mesmo medo de sempre, mas eu estava também cansado.
            E pela primeira vez, eu consegui entender o que a coisa dizia: “Olhe”. Foi o que ela disse. Ela tinha voz de homem e de mulher, e parecia ser muitos. Engoli em seco. Um frio correu a minha espinha à medida que eu me enrolava mais nas cobertas. A coisa queria que eu olhasse. Olhasse para ela. Olhasse debaixo da cama.
            Um nó se formou em minha garganta quando eu, aos poucos, decidia que iria olhar. Em quinze anos de minha existência, eu nunca havia ousado olhar debaixo da cama, e eu estava prestes a fazer isso. Minha respiração estava pesada e rápida. Minha pulsação disparada, e o suor frio escorria por meu pescoço.
            Pus a mão direita na borda da cama e hesitei por um momento. Era apavorante demais para alguém covarde como eu. Pus a outra mão e agarrei a madeira com força. Lentamente apoiei meu corpo para frente, e colocava minha cabeça embaixo da cama. Deus do céu, eu estava ficando louco. Não conseguia me controlar. Era apavorante demais.
            Então, em um movimento lento, olhei.
            Minhas mãos se afrouxaram e eu senti meu coração parar por um momento. Minha expressão se pudesse defini-la, seria de pânico. Abri a boca, mas não conseguia respirar. Parecia que todos os músculos do meu corpo haviam virado gelatina. Meus ouvidos pareciam que iriam explodir a qualquer momento. Minhas orelhas estavam quentes, e minha cabeça parecia que estava desprendida de meu corpo.
            Havia outros rostos junto, tão desfigurados quanto, mas eu estava vendo a minha própria face, de uma forma distorcida e monocromática.

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